Sem regulamentação, lei do rol da ANS não avança e pacientes buscam judicialização

Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), tornando-o exemplificativo, está próxima de completar 5 meses, mas sem aplicação efetiva. De um lado, organizações de pacientes afirmam que as operadoras não estão cumprindo a lei e a ANS pouco tem feito para fiscalizar o tema. De outro, a agência afirma que a lei não atribuiu a ela a função de regulamentar os critérios estabelecidos para essa cobertura fora do rol, fazendo com que as próprias operadoras avaliem caso a caso.

Segundo a lei, tratamentos prescritos por médicos ou dentistas que não estejam no rol necessitam apenas de comprovação científica ou que estejam incorporadas por uma agência de renome internacional, mas não há definição objetiva de quais órgãos podem ser utilizados como referência ou qual a qualidade dos estudos e pesquisas utilizados para comprovar a eficácia e segurança.

O imbróglio começou quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, em junho de 2022, que o rol era considerado taxativo, mas com possíveis exceções. Em resposta, o Congresso Nacional aprovou a lei que determina que o rol é exemplificativo.

Entidades ligadas aos planos de saúde defendiam que tornar o rol exemplificativo, permitindo cobertura para além daquelas que passaram pelo processo de Avaliação de Tecnologia em Saúde (ATS), pode acarretar em insegurança jurídica e financeira para as empresas, já que se tornaria impossível estipular os gastos que as operadoras podem ter ao longo do ano. Ainda, afirmavam que os gastos serão repassados aos beneficiários, o que pode provocar a saída de muitos deles por não conseguirem pagar o reajuste.

O tema deve voltar à discussão no Superior Tribunal Federal (STF), pois há uma ação movida pela União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (UNIDAS), em que é solicitado que os ministros julguem a inconstitucionalidade da nova lei. Ao que tudo indica, até que haja alguma movimentação da Justiça, do Governo Federal ou da própria ANS, o cenário deve seguir na mesma toada e os pacientes sigam dependendo de ações judiciais para garantir o acesso a tais tratamentos.

Acesso negado

“Muitos pacientes estão tendo dificuldade ainda. Claro, a lei é recente, também tem um prazo de adaptação de todo mundo, inclusive das operadoras e da própria ANS, mas essa lei é de setembro e até hoje a gente ainda vê pacientes que não estão conseguindo acessar, conforme os critérios desta lei. Um direito está deixando de ser efetivado”, afirma Helena Esteves, coordenadora de advocacy do Instituto Oncoguia, organização que atua pelos direitos dos pacientes com câncer.

Essa situação levou o Oncoguia a questionar a ANS via Lei de Acesso à Informação (LAI) sobre como o paciente deve proceder caso haja uma negativa de tratamento que não esteja no rol de procedimentos, mas se adeque à lei 14.454 de 2022, tendo indicação médica, comprovação científica e incorporação por uma agência internacional de renome.

A resposta da ANS para o instituto foi de que o recomendado em caso de negativa é que o paciente abra uma Notificação de Intermediação Preliminar (NIP), instrumento da própria agência reguladora que visa resolver conflitos entre pacientes e operadoras. O texto afirma também que “restou orientado pela Procuradoria Federal junto a ANS, responsável pela análise jurídica das questões atreladas à Agência, que a ANS não teria competência para fiscalizar/aplicar penalidades a partir dessas situações”.

Após novo questionamento via LAI, o Oncoguia recebeu o parecer completo — a qual Futuro da Saúde teve acesso — que traz mais detalhes sobre o entendimento de que não compete à ANS a fiscalização ou a regulamentação da lei, embora o documento reforce o papel da agência em fomentar boas práticas relacionadas à saúde suplementar.

Diante desse cenário, sobra então aos pacientes a tentativa de acesso por via judicial. “Essa lei ela veio exatamente para encurtar esse caminho, para o paciente conseguir acesso mais fácil e mais rápido para o tratamento que está sendo prescrito. A partir do momento que você não tem esse caminho regulamentado e que você não consegue junto da operadora ou junto da ANS o acesso para esse tratamento, isso vai empurrar essas pessoas para a Justiça”, lamenta Helena.

A questão da judicialização da saúde é tema recorrente do setor, principalmente no que tange aos planos de saúde. Segundo as entidades representantes, existe o risco de afetar a segurança financeira das operadoras por conta da cobertura de tratamentos não previstos no rol. A Justiça tem trabalhado para dar mais embasamento técnico às decisões, levando em conta critérios científicos ao deferir ou não um tratamento a um paciente, com o auxílio do Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus). No entanto, a nova lei do rol exemplificativo pode aumentar ainda mais a demanda.

Falta de regulamentação da lei do rol da ANS é entrave

A simplificação dos critérios na lei do rol exemplificativo levou a um impasse: quais as comprovações científicas são consideradas válidas e quais agências internacionais de renome poderão ser utilizadas como referência? Até o momento, não há definição objetiva sobre o tema, o que provoca ainda mais confusão e incerteza.

“O paciente não consegue mostrar que alguma coisa foi incorporada em um país por um agência de renome. Primeiro porque ele não sabe o que é uma agência de renome e segundo porque ele não tem acesso a essa informação de forma facilitada, nem o paciente e nem médico, na grande maioria das vezes. O funcionário da ANS que cuida de fiscalizar as operadoras também não sabe. Essas pessoas precisam ter uma mesma base de consulta e quem deveria fazer essa regulamentação é a ANS”, afirma Tiago Farina Matos, conselheiro de advocacy do Oncoguia.

Levantamento do Oncoguia apontou que, apesar de não ter uma definição sobre quais são as agências de renome, em 22 processos de Avaliação de Tecnologia em Saúde que ocorreram em 2022 para tratamentos oncológicos foram citadas 19 vezes a agência do Reino Unido, NICE, 15 vezes a agência canadense e 14 vezes a australiana, sendo elas as mais utilizadas pela ANS como referência.

Na véspera da aprovação da lei, a ANS até ensaiou a construção de uma regulamentação para definir quais critérios científicos deveriam ser utilizados, mas até o momento não houve uma publicação. Paulo Rebello, diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), afirmou durante o 26º Congresso da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), realizado em setembro de 2022, que a ideia era “apresentar um decreto ao presidente da República para que ele possa editá-lo e fazer a divulgação. Uma vez não fazendo, a própria Agência também pode fazer”.

Procurada por Futuro da Saúde, a ANS enviou uma nota em que, dentre outras informações, confirma o entendimento de que a lei “não conferiu à ANS competência para regulamentar/regular os requisitos estabelecidos na nova redação do parágrafo 13 do Art.10. […] No entanto, vale destacar que, considerando que o médico/odontólogo assistente é o responsável pela solicitação da tecnologia em saúde não prevista no Rol, caberá a ele comprovar o cumprimento dos requisitos acima mencionados”.

“A gente teve várias alterações recentes no rol, inclusive via lei. A ANS nunca trouxe esse questionamento de precisar de um decreto, ela sempre regulamentou diretamente. Não faz sentido nenhum”, explica Helena Esteves, coordenadora de advocacy do Oncoguia. Para os representantes do Instituto, a obrigação de fiscalizar a aplicação da lei do rol exemplificativo é da ANS, já que ela alterou a lei dos planos de saúde, de 1998.

“Eventualmente poderíamos tentar articular com o Ministério Público Federal e podemos avaliar entrar com alguma ação pública ou ação direta de inconstitucionalidade. Também temos pensado em articular com o Legislativo ou até um encaminhamento ao Tribunal de Contas da União, para avaliar se está havendo uma conduta indevida dos diretores da Agência. Mas tudo são possibilidades, estamos estudando”, afirma o advogado Tiago Farina Matos.

Operadoras de saúde

Do ponto de vista das operadoras, a lei que amplia a cobertura para além do rol é vista com grande receio, pois pode criar uma instabilidade econômica, já que não é possível mensurar quais serão os gastos com os tratamentos que podem vir a ser cobertos. Inevitavelmente, esses valores entrarão no reajuste anual aos beneficiários, o que pode representar um índice maior do que aqueles que as pessoas e empresas podem pagar.

“Tem que ser pensado isso porque quem vai se prejudicar é o próprio consumidor. Não vai ter dinheiro para pagar. O único plano de saúde que tem interferência da Agência no reajuste é o plano individual, que solta anualmente o índice permitido. Mas você conhece alguma operadora que vende hoje plano individual?”, afirma Cristiano Plate, advogado especializado em Saúde Suplementar, Direito Médico e Hospitalar e sócio fundador do Escritório Cristiano Plate & Advogados Associados.

Por outro lado, também tem a perda da garantia de segurança aos pacientes, já que tratamentos fora do rol não passarão pelo processo de Avaliação de Tecnologia em Saúde feito pela ANS. Sem critérios específicos de quais devem ser as comprovações científicas válidas, drogas experimentais podem ser prescritas e solicitadas pelos pacientes.

“Estamos falando que existem graus de qualidade de estudos e que isso não foi mensurado na lei porque não existe uma definição quanto a isso. A implicação disso é muito forte, a exemplo da fosfoetanolamina e o kit-Covid. E imagina isso do lado do próprio consumidor, que é quem paga a conta e deveria ser beneficiado?”, defende o advogado. Por isso, a regulamentação dos critérios seria um passo importante para reduzir os riscos aos pacientes.

Plate afirma que o cenário para as operadoras ainda está muito indefinido e o setor aguarda as indicações da ANS, para entender os critérios que devem seguir. Por enquanto, algumas empresas têm buscado pareceristas para verificar a qualidade e validade das comprovações científicas, mas a ausência de definição ainda é um entrave.

“Vai ter que ter uma sensibilidade da Agência, Ministério da Saúde, do próprio Judiciário e dos órgãos que provocaram essa situação. Com certeza aumenta a judicialização, igual sempre foi, mas talvez com mais força. Essa lei nada mais fez do que trazer um entendimento do Judiciário para dentro de casa, mesmo com aquela decisão do STJ falando do rol taxativo”, conclui o advogado especialista em saúde suplementar.

Fonte: Futuro da Saúde

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