'Nos próximos 10 anos o jogo contra o câncer pode mudar completamente', diz Nobel de Medicina
Há cerca de quatro anos, em Boston, nos Estados Unidos, o oncologista americano William Kaelin recebia uma ligação no meio da madrugada, às 4h40, de Estocolmo, capital da Suécia, contando que ele havia sido laureado com o Nobel de Medicina. “Realmente foi como um sonho”, diz o professor da Universidade de Harvard sobre o momento.
As lembranças foram rapidamente para sua esposa, Carolyn Scerbo, que havia falecido em 2015 justamente devido a um câncer cerebral, conta. O prêmio, em conjunto com outros dois médicos, foi graças a um trabalho que mostra como as células sentem e se adaptam ao oxigênio – no caso das cancerígenas, como utilizam esse mecanismo para crescerem.
Na próxima década, porém, Kaelin espera que os conhecimentos a nível genético sobre o câncer levem a tratamentos que representem uma nova fronteira para tumores agressivos, como o de Carolyn. O médico conversou com O GLOBO em Bio-Manguinhos - Fiocruz, no Rio, durante sua visita ao Brasil na última semana.
O oncologista esteve também em Brasília e São Paulo e concedeu uma série de palestras como parte do Nobel Prize Inspiration Initiative, programa global que busca incentivar jovens pesquisadores, financiado pela farmacêutica AstraZeneca. Na entrevista, contou sobre a experiência de ter ganhado um Nobel, sobre o futuro da doença e o que pode motivar o crescimento dos diagnósticos.
Ganhar um Nobel é algo que sempre esteve na sua imaginação?
Desde pequeno eu já tinha ouvido falar do Prêmio Nobel, então por um lado sim. Mas minha experiência inicial com a ciência foi bastante negativa, então durante um tempo pensei que nem mesmo seria um cientista, muito menos ganharia um prêmio. Apenas depois tive a sorte de aprender com David Livingstone (então professor) em Harvard, que me treinou para ser um verdadeiro cientista.
Mais tarde, quando conseguimos identificar o mecanismo que permitia às células sentir e responder às alterações no oxigênio, pensei: “este é o tipo de resultado que um dia poderá ganhar um prêmio”, mas tentei manter isso afastado na periferia da minha imaginação.
Há muitos exemplos de cientistas que ficaram amargurados e infelizes porque passaram muito tempo sonhando em ganhar um Nobel. Então acho que fiz um trabalho razoavelmente bom, mantendo o foco no meu trabalho. Mas é claro que fiquei emocionado, encantado e grato por ter ganhado.
Como foi o momento em que recebeu a notícia?
Por causa das diferenças de fuso horário, as ligações são bem cedo. Na noite anterior ao anúncio, fui dormir com o som do telefone ligado, na mesa de cabeceira. Como eu gosto de dizer, sabia que tinha uma chance “diferente de zero” de ganhar o Prêmio Nobel. E ele de fato tocou, às 4h40.
Nesse horário, você está meio dormindo ainda, mas pude ver que a chamada tinha muitos dígitos para ser doméstica. Quando que era de Estocolmo foi realmente como se fosse um sonho. Fui imediatamente inundado de pensamentos sobre minha falecida esposa, que foi minha companheira de vida e infelizmente não estava lá para compartilhar isso comigo. Pensei em muitas outras maneiras pelas quais tive muita sorte na vida para chegar a este ponto.
Por que decidiu pesquisar sobre o câncer? A morte de sua esposa influenciou o caminho?
Ironicamente, o desenvolvimento do câncer de minha esposa ocorreu anos depois de eu já ter me formado como oncologista. Algo que sempre me intrigou no câncer é a ideia de que ele é uma espécie de inimigo interno, em que uma de suas próprias células se torna “rebelde” e começa a atacar você.
Com o tempo, outra coisa que me fascinou foi como praticamente qualquer órgão pode ser afetado. Nunca quis ser focado em um órgão específico, como um cardiologista ou um pneumologista, gosto de pensar no paciente como um todo. E o câncer pode afetar qualquer parte do corpo.
Você foi premiado por seu trabalho sobre como as células percebem e se adaptam à disponibilidade de oxigênio. Como explicaria a descoberta para um público leigo?
Todos carregamos conosco cerca de 20 mil genes, e algumas centenas são capazes de ajudá-lo a se adaptar se você não estiver recebendo oxigênio suficiente. São como músicos de uma orquestra. Portanto, precisam ser coordenados e, para isso, são controlados por uma proteína chamada HIF.
Quando as células não recebem oxigênio suficiente, o HIF diz 'é hora de tocar', e esses genes se tornam ativos. Mas a questão era: como o HIF sabe se o oxigênio está ou não disponível? O que descobrimos foi que, quando o oxigênio está disponível, um pequeno aviso químico marca o HIF para ser destruído, por isso ele não age. Já quando os níveis de oxigênio estão baixos, isso não acontece, então ele continua ativando esses genes. É um mecanismo simples, mas presente em todos os animais do planeta.
Como esse mecanismo envolve o câncer e outras doenças?
Existem certos tipos de câncer que sequestram o HIF porque o câncer também gosta de receber oxigênio para crescer. E agora que entendemos esse detalhe bioquímico, passaram a existir oportunidades para desenvolver medicamentos que impeçam isso.
Um outro exemplo são doenças em que há um problema com o fornecimento de oxigênio e é necessário ativar esses genes. Agora, existem medicamentos para anemia que farão o corpo pensar que não está recebendo oxigênio suficiente, porque ativam o HIF. Como resultado, o corpo produz mais glóbulos vermelhos.
Essas descobertas a nível genético devem levar a avanços significativos na medicina nos próximos anos?
O primeiro rascunho do genoma humano foi lançado apenas no ano 2000, há pouco tempo. Estamos vendo agora um número crescente de medicamentos sendo desenvolvidos com base nesse conhecimento. Por exemplo, há 20 anos, para criar um medicamento para baixar o colesterol havia muita incerteza sobre quais os melhores alvos. Agora sabemos que existem raros indivíduos no mundo que têm uma mutação num gene chamado PCSK9, e que essas pessoas têm colesterol baixo.
Isso indica o papel da proteína produzida por esse gene no controle do colesterol. Então, veremos um aumento no ritmo da descoberta farmacêutica em diversas áreas terapêuticas porque temos cada vez mais exemplos de alvos que são informados pela genética.
E como é com o câncer?
No câncer, sabemos que os mais comuns são causados por mutações genéticas e, na maioria dos casos, adquiridas após o nascimento. Felizmente, para a maioria, a mutação de apenas um único gene não é suficiente para causar o câncer, você precisa ter três, quatro, cinco genes críticos alterados.
Nos últimos 10, 20 anos, a nossa capacidade de sequenciar rapidamente o DNA melhorou dramaticamente e o custo caiu também. Então o objetivo será, a longo prazo, conseguir identificar todas as mutações que causam aquele tumor e combinar essas informações com medicamentos específicos que forem concebidos para elas.
Acredita que teremos novidades na próxima década que possam levar a cura de alguns tipos de câncer, ou estender a vida de pacientes com tumores mais agressivos?
A expectativa é que sim, e ficarei muito desapontado se for diferente. Estamos entrando em um período em que temos muito mais informações sobre as alterações genéticas que causam certos tipos de câncer. Mas não só isso, também sabemos mais sobre os genes que regulam a resposta imune e isso cria oportunidades para tornar o sistema imunológico mais ou menos ativo.
Um dos desafios no desenvolvimento de medicamentos para o câncer é ainda que gostaríamos de poder dizer 'compreendemos todas as regras’, mas não compreendemos. Porém, se esperarmos por esse dia, vai demorar e muitos pacientes vão sofrer. Então temos que fazer o melhor que pudermos com o conhecimento que temos.
Mas espero que nos próximos 10 anos alguém descubra algo que nem consigo imaginar no momento, e que mude completamente o jogo. Talvez leve a uma terapia contra o câncer altamente eficaz, que englobe muitos tipos diferentes de tumores e alterações genéticas. Quando se faz ciência, quanto mais investirmos em conhecimento, mais rápido será o progresso.
Hoje temos muitos estudos clínicos com vacinas terapêuticas para o câncer, induzindo o sistema imune da pessoa a atacar o tumor. Qual a expectativa?
Claramente a imunoterapia veio para ficar. Tivemos sucesso não apenas com drogas que estimulam o sistema imunológico, mas também temos as chamadas CAR-T Cell, onde podemos agora, pela primeira vez, basicamente reprojetar células imunológicas fora do corpo para torná-las combatentes do câncer mais eficazes e devolvê-las ao paciente.
Estudos indicam que os casos de câncer têm aumentado especialmente entre jovens. Na sua opinião, por que isso está acontecendo?
Não sou especialista nesta área, mas temo que seja provavelmente uma combinação de fatores. Receio que parte seja ambiental, relacionada com produtos químicos do nosso ambiente. Também me preocupo com a dieta, acredito que não há dúvida de que ela afeta o nosso risco de câncer. Não apenas os efeitos da alimentação em si, mas também o impacto no microbioma, a população de bactérias que vivem no nosso intestino.
Estamos num momento de muitos avanços científicos, mas também temos uma onda de negacionismo crescendo em todo o mundo. Como você vê esse cenário?
Penso que até os fundadores dos Estados Unidos entendiam que as democracias exigem um certo nível de educação compartilhada, de valorização do método científico e do pensamento lógico. Foi o método científico que ajudou a nos tirar da idade das trevas.
Uma das minhas grandes decepções foi durante a pandemia Vendo o quão bem e rapidamente a comunidade científica respondeu na produção de vacinas, pensei que a resposta seria o mesmo tipo de celebração da ciência que vi quando era criança quando aterrissamos na lua.
Mas em vez disso, em muitos países, incluindo no Brasil e nos Estados Unidos, houve essa polarização onde algumas pessoas encontraram uma razão para criticar. Acredito ser algo em que precisamos trabalhar.
Fonte: O Globo
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