Depoimento: Eu, minha mãe e o câncer

Eu sentia um orgulho enorme da minha mãe. Difícil explicar um só por quê. Esse sentimento eu tinha desde muito pequena, sem que entendesse qualquer coisa do mundo. Tinha orgulho porque minha mãe sempre foi um porto seguro. Não só meu. Mas de muita gente. Eu reconhecia nela essa habilidade de juntar afeto, segurança, humor, gentileza e sabedoria. E as pessoas ao redor dela também.

Percebia que dizer que era filha de Inês não era pouca coisa. Pela reação das pessoas. Lembro bem das reações de alegria, respeito e das reafirmações de como ela era incrível. Ainda em vida. E isso só se manteve após a morte dela, em julho de 2020, após 14 longos anos lutando contra um melanoma de coróide. Sim, no olho. Descobriu por acaso, ao tampar um olho numa brincadeira e perceber que não enxergava nada. Um dos piores cânceres, o melanoma. Raro, muito raro. Mas como ela dizia rindo, "culpa do DNA estragado da nossa família"! Somos todos um pouco raros por aqui…

Com minha mãe comigo, eu me sentia protegida. Porque ela dava solução pra tudo. Ela lutava como podia para não ficar no sofrimento. Lutava para sair da tristeza. Era um custo alto não se acomodar em sofrer e reclamar. E quando eu fazia do ouvido dela depósito de reclamação, ela já disparava: não tem nada de bom pra contar?! Ela queria que eu também não me acomodasse em lamentações.

A única coisa para a qual ela não tinha solução era o câncer. Ela fez o que pôde. Pesquisou quem eram os melhores médicos, melhor hospital, leu muito sobre saúde, mudou seu estilo de vida, aceitou a nova rotina cheia de marcações de exames, consultas, de agulhadas. Virou assídua frequentadora do Clube da Luta, como ela chamava o Hospital AC Camargo, um das referências no tratamento de câncer no Brasil. E ainda dizia: sorte nossa morar em São Paulo. E olhando por esse lado, sim, muita sorte. E tivemos muitas outras sortes. Privilégio que chama.

O meu desespero era não poder proteger quem me protegeu a vida toda. Era não poder solucionar o único problema para o qual ela não tinha solução. E não tem manual para cuidar da mãe com câncer aos 25 anos (ela tinha 58 quando recebeu o diagnóstico), e sendo filha única de pai falecido (de infarto, durante tratamento de leucemia recém-diagnosticada). Aliás, ele morreu cinco meses depois do diagnóstico dela. Eu, que achava que perderia minha mãe naquele momento, perdi meu pai, aos 61 anos. E onde não há opção, a gente só engata a primeira e vai. E depois ganha o título de guerreira e forte. Mas qual outro caminho seria possível? Desconheço.

Então eu fiz o que eu sabia. Amei muito minha mãe. Estive presente. Segurei a sua mão nas dezenas de furos nas mãos e braços para tomar medicação. Fui com ela, dirigindo meu carro para aliviar ao menos essa obrigação do tratamento: sim, o transporte. Lidei com o plano de saúde para ela não ter esse estresse adicional. Eu pegava água para ela na sala de espera do hospital. Também criamos a rotina de tomar café na lanchonete do hospital. E na volta para casa, parar no supermercado para comprar o pão preferido dela. Fiz até um blog (https://blogdaines.wordpress.com) para ela se ocupar e falar sobre o que a interessava, inclusive o câncer, livros e nossas viagens. Manter o blog, certamente, deu mais dias de vida a ela.

Eu engoli muito o choro. Como quando precisei ver a cavidade ocular dela, após a enucleação (sim, retirada do globo ocular), para passar a pomada do pós-operatório. Ela estava muito vulnerável e constrangida. Eu diria que até envergonhada de me fazer passar por isso. Mas a gente precisava uma da outra. E nossa cumplicidade permitiu que passássemos juntas, em profunda segurança emocional, por essa etapa tristíssima. Choro ainda hoje só de lembrar desse dia.

O câncer não era um tabu. Nem tinha como ser. Afinal, ele atravessa a vida do paciente e de quem cuida dele. E se você quer viver apesar do câncer, precisa cuidar muito bem do tratamento. E isso exige tempo, dinheiro, energia, mudança de prioridades. E apoio. Muito apoio.

Tem uma cena que eu jamais esqueci nessa jornada de apoiar e cuidar da minha mãe ao longo desses tantos anos desde o diagnóstico. Ela ligou para uma amiga para contar a má notícia de que estava com câncer. Eu estava do lado, no sofá. Passados uns dois minutos de conversa, ouço minha mãe falando: "Não fica assim. Vai ficar tudo bem". E assim, a pessoa que devia ser consolada, teve que ter força para consolar. E ela fez isso muitas vezes. E aposto que o fazia com muita dor.

Ser cuidadora de familiar com câncer é engolir o choro permanente. É dar a volta por cima das más notícias, mesmo que você esteja só disfarçando, algumas vezes. Ou muitas vezes. Porque você está apavorado, na verdade. Mas engolir o choro e resolver problemas do cotidiano e do tratamento era o que eu fiz por muito tempo. Anos. E faria por muito mais. Porque o que a gente sempre quer é mais tempo. Era a meta de fazer ela viver bem e mais, e de eu não ser consolada por ela.

Em julho de 2023, fez três anos que ela se foi. Ao longo dos 14 anos de tratamento, o meu medo desde sempre era que a ladeira chegasse. Aquela ladeira que você sabe que só desce. Era perceber que essa ladeira havia chegado e eu sabia onde ela ia terminar. E foi assim, no meio de uma pandemia mundial de Covid-19 que chegamos no topo da ladeira. A descida foi veloz e durou cerca de um mês, no calendário. Porque pra mim durou anos. Começamos de mãos dadas, não só entre nós, mas com muitos profissionais de cuidados paliativos, muitos amigos e familiares, à distância por causa do coronavírus.

É inenarrável o que passamos. Isoladas. Mas o que muito me marcou foi ela contando às enfermeiras sobre o sonho que realizou quando viajamos juntas para a África do Sul, para a terra de Nelson Mandela. Ela sabia tudo sobre ele e estudava muito sobre o apartheid. Também amava a escritora Paulina Chiziane e Mia Couto, ambos de Moçambique. E para lá fomos também. Quando ninguém ainda conhecia Hugo Chávez, ela me levou para a Venezuela. E me contou de Simón Bolívar na viagem ao Paraguai. E sobre os tupamaros no Uruguai. E sobre o trio Fidel-Che-Camilo em Cuba. E eu tô aqui sentindo uma enorme saudade, orgulho e agradecimento. E uma falta da minha guia espetacular.

Mas, como ela dizia, "vamos em frente que atrás vem gente, Beatriz!" Então, estou indo… E como os azares vem aos pares, estive semana passada no AC Camargo para tirar um tumor (que depois se confirmou benigno!), chamado osteoma.

Mas o pior não foi receber este diagnóstico. Foi reviver tudo. Ver a cafeteria que íamos. Ver as cadeiras onde nos sentamos tantas e tantas horas. Ficar com o papelzinho da senha esperando o número aparecer na tela. E começar a processar, finalmente, o que vivemos. Porque o luto é assim. Não tem data para acabar. Não é linear. É um misto de saudade, de tristeza e de agradecimento por termos vivido e sobrevivido juntas.

É luto e trauma também. Mas a gente sobrevive. Nem que seja chorando. Ao entrar no centro cirúrgico para remover meu tumor na testa, impossível não lembrar dela. E comecei a cantar mentalmente a música Timoneiro, do Paulinho da Viola. "Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar…". Ela cantava sempre ao entrar para os procedimentos… Chorei. Os médicos acharam que era nervosismo. Mas era saudades, na verdade. E também lamento de imaginar o que ela sentiu quando entrou no centro cirúrgico para a retirada do globo ocular. Esse tempo antes da anestesia, sabe?

Não tem um dia sequer que eu não pense ou fale nela. Meus filhos já não se lembram direito da vó, mas ela é presente nas memórias que cultivo. E a vovó Inês é a ídola deles. Não tinha como ser diferente. Confesso que quando eles resistem a algo, tipo comer mamão, eu falo "vovó Inês adorava mamão", e pronto. Lá estão eles comendo... E eu estou já planejando como serão as viagens com eles. Em dezembro, vou levá-los para a terra das madres da Plaza de Mayo. Um dia de cada vez.

Fonte: Folha de S. Paulo

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