A (des)obrigação de planos de saúde fornecer medicamento para câncer

Um diagnóstico de câncer é um momento desafiador para qualquer pessoa. Surgem diversas incertezas e inseguranças sobre as novas etapas do processo, ainda que seja uma doença tratável.

Além das questões de saúde, como a viabilidade do tratamento, há questionamentos sobre a parte financeira, os custos para arcar com o processo terapêutico.

As operadoras de planos de saúde podem dar o suporte necessário em muitos momentos nessas etapas, como em exames, consultas e cirurgias. Porém, e quanto ao fornecimento de medicamentos para o câncer?

Para facilitar a visualização, analisaremos um caso hipotético.

Ana, brasileira, idosa, aposentada, é diagnosticada com neoplasia renal, iniciando tratamento oncológico com um médico especialista de sua confiança.

O médico responsável decidiu adotar determinado medicamento a ser administrado por Ana em sua residência: uma caixa de um medicamento X, um comprimido por dia.

Analisando os preços do medicamento antineoplásico nas farmácias, foi encontrado o preço padrão de R$ 60 mil uma caixa com 30 comprimidos, suficiente para 1 mês. Ana, então, solicita ao seu plano de saúde que o forneça.

Por ser beneficiária do plano há anos, extremamente adimplente, Ana fica confiante ao realizar a solicitação, acreditando que não terá que arcar com os elevados custos do fármaco.

Para a sua surpresa, a solicitação é negada com a justificada “produto sem cobertura”.

Indignada e assustada, Ana aciona o Poder Judiciário para que obrigue o plano de saúde por meio de uma obrigação de fazer a fornecer o respectivo medicamento solicitado pelo médico especialista cumulado com indenização por danos morais.

Posto isso, questiona-se a possibilidade de (1) fornecimento de medicamento domiciliar para tratamento de câncer pela operadora de plano de saúde e (2) indenização por danos morais após a negativa.

Desenvolvimento da judicialização da saúde

No Brasil, o direito à saúde tem origem no movimento da reforma sanitária, que refletiu na criação do Sistema Único de Saúde (SUS), na Constituição de 1988 (CF) (Souza, 2018).

A CF foi o primeiro texto na história do direito constitucional brasileiro a reconhecer o direito à saúde como direito fundamental (Mendes; Branco, 2015). Constando no artigo 196 que a saúde é direito de todos e dever do Estado.

Além de ser um direito social, o direito à saúde é indissociável do direito à vida. Assim, o Estado não pode ser omisso diante de um problema de saúde de uma pessoa, sob pena de incidir em comportamento inconstitucional e poder ser demandado judicialmente, por exemplo, para garantir assistência terapêutica, incluindo farmacêutica (Ramos, 2013).

Como o Estado não é capaz de gerir a saúde na totalidade com eficácia, carecendo a saúde pública de recursos, e sendo a saúde necessária para a manutenção e continuidade da vida, muitas pessoas aderem aos planos oferecidos pelas operadoras privadas.

É certo que não existiriam ou seriam escassos os planos de saúde em um cenário em que existem diversos postos públicos de saúde funcionando perfeitamente pelo País, com diversos profissionais trabalhando, materiais e estruturas capazes de atender as demandas.

Nesse sentido, não se pode separar a saúde e a economia, pois o lucro das operadoras de saúde, as negativas de atendimento e a judicialização da saúde estão interligados.

É possível que o debate dos tópicos seguintes seja fortemente influenciado por uma economia instável e atuação estatal que carece de fiscalização na atuação privada.

Nessa linha, ao regulamentar os planos de saúde, a Lei nº 9.656/98, impactou consideravelmente a relação entre operadoras e beneficiários. Isso porque, entre outros pontos, a lei estabeleceu coberturas mínimas obrigatórias, ocasionando uma mudança nas condições assistenciais, no acesso e garantia de direitos (Campos, 2006).

Certamente, a atuação da Agência Nacional de Saúde (ANS) tem papel crucial, mas ainda parece haver uma necessidade maior de gestão ou gerenciamento sobre as operadoras de plano de saúde, pois muitas lides não resolvidas com a operadora acabam precisando do Poder Judiciário.

A operadora lucra justamente nos casos não judicializados, em que as pessoas desconhecem os seus direitos ou deixam de procurar advogado especializado por acharem que o valor cobrado é caro.

Nesse sentido, as políticas públicas sociais são o principal instrumento estatal para (re)distribuição de renda, atribuindo bens e serviços àqueles que mais necessitam (Santos, 2024). Além disso, como não poderia deixar de ser, as políticas públicas de saúde são uma excelente forma de promover a igualdade social (Santos, 2016).

O SUS é a maior política pública de acesso à saúde no País, que fornece inclusive remédios gratuitamente. A relação nacional de medicamentos essenciais (Rename) apresenta os medicamentos oferecidos nos níveis de atenção e nas linhas de cuidado do SUS, sendo também instrumento orientador do uso de medicamentos e insumos (Relação, 2022).

Entre vários medicamentos fornecidos, encontram-se fármacos antineoplásicos, destinados a tratamento até mesmo em casa. Como muitas pessoas são beneficiárias dos planos de saúde, solicitam que o próprio plano forneça o medicamento, seja por não constar no rol do Rename, seja pelo beneficiário não preencher os requisitos para obrigar o fornecimento por um ente público.

Da responsabilização do plano de saúde em casos de câncer

Estima-se que existam 20 milhões de novos casos de câncer e 10 milhões de mortes causadas pela doença por ano. Na América, o câncer é a segunda causa mais incidente de morbidade (Câncer em números, 2023).

Companhas como Outubro Rosa e Novembro Azul trazem alertas importantes para a população sobre a doença. Inclusive, o Instituto Nacional do Câncer — INCA (2024) divulgou em outubro de 2024 que mulheres negras têm 57% de chance a mais de vir a falecer por câncer de mama do que as brancas.

Após a descoberta da doença, surgem muitas dúvidas e anseios. São diversos termos técnicos, opções de tratamento, medicações e exames.

Com as constantes mudanças no tratamento do câncer, as drogas estão cara vez mais caras e as estratégias de tratamento, mais individualizadas (Kozan, 2019).

Havendo prescrição de terapia por meio de medicamentos anticancerígenos, o tratamento pode durar anos, como no caso da hormonioterapia, que pode ser usada de forma isolada ou em combinação com outras formas terapêuticas (Tratamentos do câncer, 2023).

Somando os remédios, as consultas e cirurgias, o preço pode ser bem elevado para o paciente. Uma possibilidade para evitar gastos é solicitar ao plano de saúde que forneça o medicamento.

Posto isso, as operadoras de planos de saúde recebem diariamente solicitações para fornecer fármacos antineoplásicos, que podem ser administrados pelo próprio paciente em sua residência.

Após o laudo médico especificando o medicamento domiciliar e a requisição, é comum que os planos de saúde se neguem a fornecer, utilizando justificativas como “produto sem cobertura”; “caráter experimental ou fora das hipóteses previstas na bula (off-label)” e “não previsão em rol da ANS”.

Ocorre que nenhuma dessas justificativas merecem prosperar. Conforme entendimento já bastante pacificado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), as operadoras de planos de saúde têm o dever de cobertura de fármacos antineoplásicos utilizados para tratamento contra o câncer, sendo irrelevante analisar a natureza taxativa ou exemplificativa do rol da ANS (AgInt no REsp 2.057.814-SP).

No Recurso Especial nº 1.721.873/SP, o STJ decidiu que “a recusa de cobertura de tratamento prescrito por médico especialista, sob a alegação de que o procedimento não consta no rol de procedimentos da ANS, é ilícita, por representar abusividade e afronta ao direito à saúde”.

Ainda, no REsp 1.874.078/PE, o STJ decidiu que “não é cabível a negativa de tratamento indicado pelo profissional de saúde como necessário à saúde e à cura de doença efetivamente coberta pelo contrato de plano de saúde”.

Sendo assim, fica demonstrada a responsabilidade das operadoras de planos de saúde em fornecer medicamento domiciliar para tratamento de câncer, considerando abusiva a negativa.

Inclusive, conforme a súmula n° 102 do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), “havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS”.

‘Além disso, a resolução normativa nº 465/2021 da ANS confirma a obrigação dos planos em fornecer medicamentos para o tratamento do câncer, contanto que prescrito pelo médico responsável.

Da tutela de urgência para obrigação de fornecer medicamento

Ressaltando a importância e celeridade do direito à saúde, é perfeitamente cabível em muitos processos uma tutela provisória, que advém do caráter não definitivo de sua concessão, sendo, portanto, posteriormente confirmada em uma sentença definitiva (Voigt; Santos, 2017).

Nas demandas judiciais de saúde, por se tratar de tema delicado e de impraticável interrupção em caso de medicamento essencial a pessoa (Souza, 2018), torna-se crucial requerer uma tutela de urgência.

Em muitos casos, o autor não tem condições de saúde para esperar o exercício do contraditório sem que isto lhe acometa ainda mais prejuízos ao seu bem-estar. Podem ser gravíssimas as consequências decorrentes do não fornecimento de determinado medicamento, resultando até mesmo na possibilidade de óbito.

Ao acionar o Poder Judiciário, havendo uma liminar deferida, o Juízo determinará o fornecimento do medicamento pela operadora de plano de saúde, possivelmente com multa por hora ou diária pelo não cumprimento da decisão liminar após a intimação, como meios coercitivos de cumprimento da decisão (Câmara, 2019).

Além disso, não há que falar em irreversibilidade dos efeitos da tutela provisória, visto que os mesmos poderão ser recompostos a qualquer momento, com a possibilidade de cobrança de valores na eventualidade de vir a ser vencido o consumidor na demanda.

Conclusão

Ao estabelecer o direito à saúde como um direito de todos e dever do Estado, a Constituição forneceu ao Poder Judiciário um papel importantíssimo na solidificação e concretização desse direito.

Entendendo que o SUS não é capaz sozinho de suportar com eficiência as demandas, a iniciativa privada ganha papel relevante na garantia do acesso à saúde. Portanto, é preciso contar com a iniciativa privada, que deve se submeter a função social, incluindo as grandes indústrias farmacêuticas.

Às vezes, a iniciativa privada deixa a desejar, negando consultas, exames e procedimentos a fim de evitar gastos, ainda que seja garantido ao beneficiário por meio de contrato. Não havendo resolução do problema na via administrativa, não resta outra opção: é preciso recorrer ao Judiciário.

Por essa razão, o Judiciário tem recebido muitas demandas para se manifestar sobre saúde, número crescente ao longo dos anos, e tido uma postura para assegurar o direito à saúde. Postura essa muito pró-beneficiário.

Nessa linha, ao analisar um processo que envolve uma operadora de plano de saúde, devem-se observar vários requisitos para resguardar ao beneficiário a sua proteção como parte hipossuficiente na relação jurídica.

As negativas de fornecimento de remédios para tratamento domiciliar do câncer têm se relevado abusivas, permitindo inclusive indenização por danos morais. Destaca-se que a jurisprudência vem pacificamente reconhecendo o direito a indenização por danos morais nos casos de negativas abusivas por parte dos planos de saúde.

A título de aprofundamento, o montante indenizável não pode ser irrisório, a ponto de menosprezar a dor e o abuso sofridos pelo beneficiário, e deve considerar a função punitiva, pedagógica e reparatória da indenização por danos morais, com o fim de desestimular a reiterada conduta abusiva da operadora, visando à obtenção de lucro por meio da reprovável violação de direitos básicos do consumidor.

De modo geral, a jurisprudência tem assegurado o direito à saúde e o fornecimento de medicamentos para o câncer por planos de saúde, sendo necessários requisitos básicos para comprovar o direito e a relevância de determinado medicamento para o caso concreto.

Ao fornecer o medicamento antineoplásico ao beneficiário do plano, as operadoras fortalecem o acesso e ampliação de um direito tão importante, cumprindo talvez até a sua função social.

Referências

CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 5ª edição. São Paulo: Altas, 2019.

CAMPOS, Carla da Costa. Um estudo das relações entre operadoras de planos de assistência à saúde e prestadoras de serviço. O Mundo da Saúde, v. 30, n. 2, p. 228-238, 2006.

CÂNCER EM NÚMEROS. ONCOGUIA. Disponível em: https://www.oncoguia.org.br/conteudo/cancer-em-numeros/16792/1343/. Acesso em 15/10/2024.

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KOZAN, Juliana Ferreira. Por que pacientes com câncer vão à Justiça? Um estudo sobre ações judiciais movidas contra o Sistema Único de Saúde (SUS) e contra os planos de saúde na Cidade de São Paulo. 2019. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. doi:10.11606/D.5.2019.tde-03102019-114604. Acesso em 15/10/2024.

MENDES, Gilmar Ferreira Mendes. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10º ed. rev. e atual. SP: Saraiva, 2015.

RAMOS, Karina Alves; FERREIRA, Anísia da Soledade dias. Análise da demanda de medicamentos para uso off label por meio de ações judiciais na Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, Brasil, v. 14, n. 1, p. 98–121, 2013. DOI: 10.11606/issn.2316-9044.v14i1p98-121. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/56626. Acesso em: 17/10/2024.

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TRATAMENTOS DO CÂNCER. ONCOGUIA. Disponível em: https://www.oncoguia.org.br/conteudo/tratamentos/77/50/. Acesso em 15/10/2024.

VOIGT, Irene; SANTOS, Lourdes Rosalvo da Silva dos. As tutelas provisórias à luz do Novo Código de Processo Civil. Revista jurídica direito, sociedade e justiça, [S. l.], v. 4, n. 4, 2017. Disponível em: https://periodicosonline.uems.br/index.php/RJDSJ/article/view/1873. Acesso em: 17/10/2024.

Fonte: Consultor Jurídico

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