PaliATIVA, eu?

Viver o diagnóstico do câncer nunca foi uma surpresa pra mim. De forma leiga, eu já imaginava que ele bateria na minha porta, assim como o verão para “Veveta”. O câncer já havia acometido uma tia, minha irmã, meu tio, minha prima, que por sua vez só me falou depois que eu bradei aos quatro ventos da Andorinha (a mania desgraçada que as pessoas têm de esconder o diagnóstico, de não pronunciar o nome impronunciável me cansa)!
Passei pelo diagnóstico, pelo limbo e pelo câncer de vias biliares que o meu pai fora acometido. Vivi o luto e a angústia de, mesmo com tanta informação não ter tido a oportunidade de ajudá-lo ainda mais. Vivi tempestades de emoções, por dentro e por fora, lutando para administrar a sua ausência _ não adianta, você pode ser velho como for, você se sente órfão _ e lutando contra o mundo burocrático que apareceu: é certidão de óbito, questões relacionadas a patrimônio, suporte a minha madrasta, até o plano telefônico me deu trabalho de cancelar. Com licença da palavra “é um inferno! “
Final daquele ano, recebi o diagnóstico da metástase e que, a partir daquele momento seria uma paciente paliativa. A primeira coisa que pensei foi a de ficar sem andar, já que eu tinha metástase na coluna e na bacia. O medo de ficar dependente de alguém, e depois o medo de morrer. Passei a usar como lema a frase do Sid a preguiça gigante do filme A Era do Gelo “A gente vai viver, a gente vai morrer”. A frase era pronunciada moldando-se ao resultado dos meus pet - CT, mudando de protocolo a cada três meses.
E, diante da metástase e dessa nova condição de paliativa, que só ouvira do médico residente, quando a lesão do meu pai não era mais operável, resolvi procurar apoio da equipe paliativista onde faço tratamento oncológico. Queria entender esse processo novo e me sentir acolhida. Não que minha oncologista não fosse mais que uma médica, uma amiga eu diria. Mas tem questões duras de serem ditas e uma delas é o testamento vital, ou diretivas antecipadas de vontade.
Fiz a primeira consulta e outras vieram. Ajudaram a me organizar internamente e ainda mais a problemas familiares que vieram a me tirar a paz _ sim, porque como já disse a gente tem câncer incurável, as pessoas choram ao lhe ver nessa nova condição, mas com o tempo como você continua andando por aí, viajando, cuidando de suas coisas e você não morre (e agora José? Parafraseando Carlos Drummond de Andrade ou ainda me sentindo como o personagem do Christopher Lambert no filme Highlander contém muita ironia), o mundo continua a girar e os problemas surgem, inclusive os familiares.
Incentivei uma amiga a ingressar neste mundo novo comigo. E ela, estudiosa como ela só, eu enquanto educadora lhe daria nota 10, já foi para congresso, ouve podcast, é uma devoradora quanto ao tema, me convidou a uma consulta coletiva. E, como foi libertador, nada sofrível falar sobre as diretivas, como já ouvira falar. É expressar os nossos sentimentos mais profundos sobre o que de fato queremos e que o seja de forma clara, para que não existam interpretações duplas. Que nosso legado, nossas vontades sejam respeitadas. Que seja feito o melhor ao nível de cada um, com apoio da ciência. E que a nova política de cuidados paliativos que nasceu há tão pouco consiga de fato ser implementada e desmistificada, não como algo para o fim, quando não se há o que fazer e sim, para quando há vida. Tô aqui viva, gorda e forte, com câncer sim, mas viva.
E viva o Sid.
Marta Maria da Silva
(Pedagoga, paciente paliativa de câncer de mama metastático, membro do comitê de pacientes Oncoguia e da Rede de pacientes negros com câncer, esposa do Marcelo, mãe do Marcelinho e do Gui e moradora de Andorinha/Bahia)