Gatilhos

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Acordo cedo, a cabeça doendo. Mas, adulto não tem direito a ficar doente, principalmente se esse adulto é do sexo feminino. Recusei-me a levantar da cama, onde os filhos me olham e, já vestidos pra escola a questionar: _ o que você tem? Respondi: _ preguiça. Não estava a fim de ficar explicando que estava com dor de cabeça, enjoada e constipada, com o intestino sem funcionar há 5 dias!

Havia tomado um laxante por recomendação da equipe paliativista. Iria tomar outro, após todo mundo sair, porque a mãe não tem paz nem na hora que está no banheiro! 

Enfim... a paz, mas como uma amiga brinca, tinha um prédio a construir; varre, tira pó, arruma, coloca no lugar... por mais que procure me organizar, sempre fica algo pra trás. Que infernooooooooo! 

Marido chega, com o famoso suco do Chaves_ geração anos 80 sabe do que estou falando. Enfim, o intestino funciona. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis... enfim, o desconforto acabou. E, o prédio tinha sido construído.

Eu só queria sossego. Deitei, conversei com algumas oncofriends que eu não falava há dias. Uma, de preguiça pra fazer uma tomografia, reagendada duas vezes. Pense como ando preocupada com ela! A outra, a retirar pontos de uma cirurgia e, num desabafo meu, sobre uma fala de um médico no fórum Oncoguia, nos quais sou voluntária, disparou-me um gatilho que, eu não consegui mais assistir o fórum. Desliguei a TV, chorei, e questionei na terapia logo depois: _porque eu nunca fui alertada sobre teste genético, quando existia um histórico considerável em 2014, quando comecei a acompanhar com mastologista? Eu poderia estar livre de tudo isso. 

Cansei de ter câncer, e essa amiga, em acompanhamento oncológico, relatando todos os problemas envolvendo seu plano de saúde, a negativa em uma tomografia para uma investigação, os problemas com a cirurgia da mão que por pouco não comprometeu nervos, sobre a sudorese, a fadiga nas pequenas coisas... lágrimas compartilhadas a distância. E, continuo a repetir, cansei de ter câncer, de falar sobre câncer, de ouvir sobre câncer!

Ah, mas os palpiteiros de plantão, talvez até meu marido iriam dizer que eu estou fazendo tratamento em casa, evitando as idas e vindas pra Salvador e tudo mais que ela provoca: enjoo, cansaço, gastos... E que deveria estar grata por isso. Mas eu tenho direito de dizer que cansei, porque não tenho mais o rendimento de antes, tenho que lidar com sintomas, que qualquer infecção é risco de vida. Cansada de não ser compreendida e acolhida nas minhas dores. Cansada de ter que fazer malabarismo com as minhas contas, já que grande parte do meu orçamento é comprometida com as minhas viagens e consequentemente todo mundo sofre com isso. Cansada de ser “guerreira” _ eu não quero guerra com ninguém. 

Cansei de ser invisível, enquanto mulher, enquanto paciente que precisa de cuidados, de mãe de um adolescente atípico, de estar privando meus filhos de desejos que existem pra eles: o de uma bicicleta, de um computador para os estudos, da filha órfã que tantas vezes diante de chegar em casa pós tantas horas de viagem, ainda ter que cuidar de sua própria alimentação. Cansei de ter que entender, de ter que cuidar. Cansei de ver quase nada a respeito da minha condição, de um câncer metastático, triplo negativo, com mutação genética Palb2, ou o que vê no “google” é uma sobrevida de dois anos. 

Sou a bem-humorada do rolê, que ri das desgraças da vida, contudo venho me preparando para um velório em vida (me julguem).

E, por um tempo, não quero falar de câncer!

Marta Maria da Silva

(Paciente de câncer de mama metastático, residente em Andorinha-Bahia)