A Espiritualidade e o Câncer

Espiritualidade, fé, religião. A psico-oncologista Regina Liberato, Presidente da Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia (SPBO), conversou com o Instituto Oncoguia sobre cada um desses conceitos e a sua relação com o paciente com câncer, ou qualquer indivíduo que passe por uma grande adversidade na vida.

Liberato explica, esclarecedora, que a religião e a fé são possíveis manifestações da espiritualidade, que, por sua vez, representa argumentos que permitem ao indivíduo transcender o pessoal, o ego, o individual.

"Pode ser através do contato com a natureza e com os seus amigos, dos relacionamentos amorosos e com pessoas que você desconhece, do voluntariado, da responsabilidade social, da arte... Daquilo que te leva para além de si mesmo, além do ego, que te faz pensar a respeito do que acontece à sua volta”.

Leia a entrevista na íntegra.

Instituto Oncoguia - O que é espiritualidade e como podemos atingi-la?

Regina Liberato – Eu tenho sempre muito cuidado para falar sobre a espiritualidade. Isso porque, é muito comum confundir a espiritualidade com a religião, com um paradigma religioso. Religiosidade é o ato de religar-se a um conceito próximo à espiritualidade. Mas isso não quer dizer seita religiosa. O que eu posso fazer para desenvolver a minha espiritualidade? Fale com você mesmo, descubra em você quais são as coisas que te fazem transcender o pessoal.

Instituto Oncoguia - O que isso significa? Transcender o pessoal?

Regina Liberato – O transpessoal é o que representa algo maior que o individual. Há um livro que se chama Além da Religião (David N. Elkins), que estuda alguns passos para se desenvolver a dimensão espiritual, que pode ser através do contato com a natureza e com os seus amigos, dos relacionamentos amorosos e com pessoas que você desconhece, do voluntariado, da responsabilidade social, da arte... Daquilo que te leva para além do ego, que te faz pensar a respeito do que acontece à sua volta. Para mim, essa é a melhor definição de espiritualidade.

Instituto Oncoguia - Mas, então, eu posso praticar a minha espiritualidade através da religião?

Regina Liberato - Sim, você pode praticar a sua espiritualidade com a religião. Você consegue descobrir a relação entre o sagrado e o profano através da religião. E isso é ótimo. Mas se você descobrir através do fazer o bem para alguém ou de sua relação com a natureza, ótimo também! Mas é isso que você tem que desvendar, como fazer para sair de si mesmo e ser feliz junto com os outros que te cercam e que, por isso, fazem parte da sua constituição.

Instituto Oncoguia - Como assim, fazem parte da sua constituição?

Regina Liberato - O ser humano não nasceu sozinho, quando apareceu, JÁ apareceu com outros. Portanto, ele É em comunidade e não ESTÁ em comunidade. E se você não perceber isso, vai viver de maneira patológica. Isolado, fadado à morte psicológica (ou não).

Instituto Oncoguia - É muito comum que pessoas transcendam o ‘eu’, o individual, a partir de uma grande dificuldade na vida, como o câncer. Concorda?

Regina Liberato – Isso é muito comum, e entendo que faça sentido. Porque quando enfrentamos uma adversidade, crescemos com ela. A humanidade cresce. Uma psique vive com equilíbrio e desequilíbrio (...) e se isso não acontecesse a nossa vida seria morna, sem movimento, estática! Nós crescemos a partir de uma verdadeira espiral. O câncer é uma pausa nessa espiral. A fase que ficamos rodando, andando no mesmo lugar, andando em círculos sem subir. As adversidades aparecem durante o viver e, nessa hora, pensamos "Não vou dar conta”. Daí, então, sentimos necessidade de procurar solução além de nós mesmos. É além do ego que encontramos alternativas, canais. Vem além do ego. É transpessoal. Além da pessoa.

Instituto Oncoguia - Mas concorda que disso dependa a disponibilidade, a aptidão do indivíduo em reconhecer que precisa transcender-se para encontrar saídas?

Regina Liberato – O indivíduo pode até não se disponibilizar a enxergar isso, mas vai necessitar, pois a vida o ‘empurra’ para isso. Nós caímos, levantamos, caímos, levantamos e, com isso, aprendemos. Eu acho que o ser humano precisa evoluir, e eu acredito em sua evolução! Temos flexibilidade e vamos aprendendo. A gente busca a solução para isso. Além de nós, em algo mais poderoso. Não basta ser meu parceiro, meu marido. Tem que ser algo muito maior. E é por isso que Deus aparece muito nessa hora, na hora da adversidade.

Instituto Oncoguia - Mas, então, não estamos mais falando em espiritualidade, mas em fé. Certo?

Regina Liberato – A fé é uma das manifestações da espiritualidade. É uma das estratégias, recursos, dispositivos da espiritualidade. Fé está intimamente ligada à espiritualidade. Por quê? Porque acreditamos naquilo o que é invisível na fé. A fé não é nada cartesiana. E esse dispositivo é, hoje, muito estudado. Há pesquisas científicas que apontam a fé como, por exemplo, um fator da maior aderência a tratamentos, para maior sobrevida ou vida após o câncer... Eu não gosto da palavra sobrevida.

Instituto Oncoguia – Por que não gosta Regina?

Regina Liberato – Pois não se precisa ter sobrevida apesar ou depois do câncer, mas vida, com todos os sentidos que a palavra carrega (...) mesmo quando é um câncer muito agressivo, que insiste em não ir embora da vida do paciente. Isso não quer dizer que você não possa viver com qualidade!

Instituto Oncoguia - E há pacientes que brigam com o seu Deus... Não é?

Regina Liberato – E qual o problema de brigar com Deus? Isso depende do seu sistema de crença. Se você tem um sistema de crença que compõe uma relação com Deus, quem é que pode dizer que você não pode brigar com ele? Eu acompanhei uma religiosa que teve câncer de mama e não cuidou da doença, que, é claro, evoluiu. Ela não se tratou, pois entendeu que era casada com alguém que ia cuidar dela, com recursos mágicos. Quando ela percebeu que ia morrer, ficou internada em um hospital com administração religiosa. Essa mulher estava presa dentro de um quarto de hospital e gritava todos os impropérios possíveis a respeito de Deus. Como ela dedicou a vida inteira para Ele, que a deixou abandonada no final da doença? Ela foi traída por ele. Ficou com raiva dele.

Instituto Oncoguia - Mas deve ser muito difícil maldizer Deus...

Regina Liberato – Sim. Por conta do próprio paradigma religioso que vivemos, ele é alguém que não se maldiz. Pelo contrário. Mas há pessoas que o fazem, pois não entendem que ele seja um ser inquestionável nos seus atos. Eu acho isso absolutamente saudável. Porque você estabelece um relacionamento entre o profano e o divino.

Instituto Oncoguia - E a religião, assim como a fé, é um recurso da espiritualidade?

Regina Liberato – Pode ser outro dispositivo da espiritualidade, mas também é um importantíssimo recurso de apoio social, que é tão importante quanto a espiritualidade no contexto do câncer. Um dispositivo pode ter eficácia em diversos contextos. Por exemplo, pessoas que são fanáticas na sua prática religiosa, tendem a usar muito mal o seu dispositivo criativo, pois acabam enxergando a realidade sob um único prisma e com isso não se movimentam. Ficam estáticas. Se você relacionar um paradigma religioso à espiritualidade, isso não é necessariamente verdadeiro. Você pode escolher uma seita religiosa e se esconder atrás dela, assim como qualquer outra escolha... por exemplo, a freira, que entendeu que pelo fato de ser religiosa, Deus iria salvá-la . Esse é um verdadeiro engano.

Instituto Oncoguia – Por fim, Regina, porque ‘viver’ a espiritualidade é importante às pessoas, pacientes ou não?

Regina Liberato – A dimensão espiritual está relacionada com o sistema de crenças e valores do indivíduo e a sua busca de significado para a vida; com sentimentos como amor, compaixão, esperança, conforto e suporte; o tipo de conexão que se estabelece com pessoas e situações; relação que se cria com a natureza, o ambiente e o transcendente. A espiritualidade está intimamente ligada à integralidade do ser, o cuidado exercido da convivência cooperativa e solidária com seus pares e a relação estabelecida com o ambiente que propicia essa convivência.

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Saiba Mais: Uma definição de espiritualidade

No livro de Leonardo Boff chamado Espiritualidade, ele relata uma conversa entre Dalai-Lama e algumas outras pessoas, que perguntaram a ele o que era espiritualidade. Ele deu uma resposta simples:

"Espiritualidade é aquilo queproduz no ser humano uma mudança interior”.

Alguém perguntou:

"Mas se eu praticar a religião e observar as tradições, isso não é espiritualidade?”

Dalai-Lama respondeu:

"Pode ser espiritualidade, mas se não produzir em você uma transformação, não é espiritualidade”.

E acrescentou:

"Um cobertor que não aquece deixa de ser cobertor”.

Então a pessoa perguntou de novo:

"A espiritualidademuda ou é sempre a mesma coisa?”.

E Dalai-Lama falou:

"Como diziam os antigos, os tempos mudam e as pessoas mudam com eles. O que ontem foi espiritualidade não precisa mais ser. O queem geral se chama de espiritualidade é apenas a lembrança deantigos caminhos e métodos religiosos”.

E arrematou:

"O manto deve ser cortado para se ajustar aos homens. Não são os homens quedevem ser cortados para se ajustar ao manto”.

Leonardo Boff afirma:

"Parece-me que o principal a ser retido desse pequeno diálogo com o Dalai-Lama é que espiritualidade é aquilo que produz dentro de nós uma mudança. O ser humano é um ser de mudanças, pois nunca está pronto, está sempre se fazendo, física, psíquica, social e culturalmente. Mas há mudanças e mudanças. Há mudanças que não transformam nossa estrutura de base. Sãosuperficiais e exteriores, ou meramente quantitativas.” (...) "Mas há mudanças que são interiores. Sãoverdadeiras transformações alquímicas, capazes de dar um novo sentido à vida ou de abrir novos campos de experiência e de profundidade rumo ao próprio coração e ao mistério de todas as coisas”.
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