[ENTREVISTA] Qualidade no Tratamento

O Instituto Oncoguia conversou com o Dr. Ricardo Caponero sobre o conceito de qualidade em Saúde.
 
Instituto Oncoguia - Falando de qualidade em saúde, qual seria a melhor definição para este termo? O que ele engloba?
 
Ricardo Caponero - Pensando em qualidade como a propriedade que determina a essência ou a natureza de um ser ou coisa, qualidade em saúde seria o conjunto de propriedades relacionadas aos cuidados globais com a saúde, da manutenção da saúde (prevenção de doenças) ao restabelecimento da mesma.
 
Embora qualidades possam ser tanto positivas como negativas, quando dizemos que algo tem qualidade geralmente nos referimos aos aspectos positivos, ou seja, a uma qualidade superior.
 
Qualidade em saúde engloba questões bastante amplas, que vão desde a educação e saneamento básico, acesso a informações sobre programas de prevenção primária e rastreamento das diversas doenças, formação profissional, disponibilidade de equipamentos para diagnóstico complementar e dos recursos terapêuticos.
 
Em todas essas áreas dizemos que não basta que elas estejam disponíveis, mas que possam ser utilizadas em sua melhor potencialidade, ou seja, com qualidade. Nesses termos, qualidade pode ser entendida como confiabilidade.

Instituto Oncoguia - Considerando agora o tratamento de um câncer com qualidade, o que deve estar incluído nisto?

Ricardo Caponero - Vale a pena ressaltar que a qualidade deve começar muito antes do tratamento. Nada contribui mais para as chances de cura do que um diagnóstico precoce e correto.
 
Em termos de tratamento, a qualidade do cuidado de pacientes portadores de neoplasia é difícil de definir e de avaliar, mas há três componentes que devem ser considerados e que se resumem nas seguintes perguntas:

  • O tratamento mais adequado está sendo realizado?
  • Ele está sendo adequadamente realizado?
  • O paciente está sendo tratado tão bem quanto à doença?
 
Determinar o tratamento correto requer uma hierarquia de evidências obtidas a partir de estudos clínicos bem conduzidos somados à boa formação e experiência do profissional para julgar o melhor momento e a melhor forma de aplicar essas evidências.
 
Um procedimento de boa qualidade, bem executado, pode ser absolutamente inadequado se empregado em situação para a qual ele não é recomendado.
 
O fato de existirem evidências e consensos não garante, no entanto, que os mesmos serão empregados. É preciso haver disponibilidade de recursos diagnósticos e terapêuticos atualizados.
 
O acesso a esses recursos, que parece uma questão redundante, no Brasil, é absolutamente distinto da disponibilidade. Com uma disparidade social imensa, muitas vezes os tratamentos são disponíveis (existem em nosso meio), mas não estão acessíveis (não existe acesso igualitário a eles).
 
Confiabilidade nos resultados do emprego desses recursos é o ponto mais importante. A diminuição da eficácia, ao que chamamos de qualidade inferior, é o evento mais frequente em nosso meio. Exames com resultados não confiáveis, realizados por centros que muitas vezes não possuem qualificação e certificação dessa qualidade, somam-se a medicamentos nem sempre confiáveis.
 
Uma reportagem apresentada pela televisão neste mês mostrou que a grande maioria da população não sabe as diferenças entre medicamentos originais, similares e genéricos. Isso é preocupante quando há dados da própria Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que de 10 a 30% dos medicamentos comercializados na América Latina são falsificações ou cópias de má qualidade.
 
Por fim, a qualidade no atendimento oncológico também se refere ao cuidado do paciente, não só da doença. O paciente requer atenção e comunicação adequada tanto quanto o manejo adequado de todos os sintomas que causam impacto negativo em sua qualidade de vida, tais como dor, fadiga, obstipação e alterações do sono.

Em resumo, os pacientes com doenças neoplásicas precisam ser tratados adequadamente com métodos efetivos, confiáveis e administrados com compaixão.
 
Instituto Oncoguia - Qual a importância da qualidade do medicamento no tratamento de um câncer?
 
Ricardo Caponero - Nada é mais importante do que isso. Se uma pessoa está com febre e toma uma dose inadequada de um medicamento, ou se toma um medicamento de qualidade ruim, o pior que pode acontecer é a febre não passar. Isso será descoberto poucas horas depois e outras medidas poderão ser tomadas.
 
No caso dos pacientes com doença neoplásica em atividade, a ineficácia da medicação significa o aumento da doença, geralmente associada ao agravamento dos sintomas e à piora na qualidade de vida. Sem contar o fato de que uma indicação terapêutica, que poderia ser eficaz, será descartada quando, na verdade, não é a indicação que está inadequada, mas o medicamento que não é confiável.
 
Ou seja, se um paciente está tomando o medicamento A e apresenta progressão de doença, o mais provável é que passemos para o medicamento B, teoricamente menos eficaz ou mais tóxico do que o tratamento A, por isso não tendo sido a primeira escolha. Agora imagine que a ausência do efeito foi decorrente da qualidade do medicamento. Nesse caso o remédio A, que seria efetivo se fosse de boa qualidade, é descartado.
 
Pior ainda acontece nos pacientes que fazem tratamento adjuvante, aquele que é realizado geralmente após uma cirurgia, e cujo objetivo é impedir a volta da doença. A falha de um medicamento usado nesse contexto significa a volta da doença e uma diminuição importante nas chances de cura.
 
Recentemente discuti com um colega um caso assim. Uma senhora operada por um câncer de mama estava recebendo o medicamento A, original e passou bem, sem evidências de doença por 3 anos. Nessa época, por questões administrativas e financeiras ela precisou mudar para o medicamento B, da mesma classe terapêutica, mas que era um similar. Alguns meses após iniciar o segundo tratamento foi constatada a recidiva da doença. As dúvidas do médico eram: A progressão ocorreu pela troca do medicamento, mesmo sendo da mesma classe? A progressão ocorreu por resistência da doença e teria acontecido mesmo com o medicamento A original? Adianta voltar a usar o medicamento A? E todas essas dúvidas ocorrem porque não se pode confiar na qualidade do medicamento B similar.
 
Instituto Oncoguia - Existem diferentes tipos de medicamentos? Quais são eles? Quem avalia e certifica a qualidade destes medicamentos? Existem medicamentos com qualidade questionável ou falsificados? Quais as implicações disto?
 
Ricardo Caponero - Essa questão já foi parcialmente respondida acima, mas o assunto é tão importante que vale a pena ressaltar alguns pontos.
 
No Brasil, por determinação de lei, existem três classes de medicamentos, os originais, os similares e os genéricos. Os medicamentos originais são os produtos desenvolvidos por empresas de renome internacional e que conduziram estudos clínicos adequadamente avaliados e cuja eficácia e segurança foram testadas na prática, em sujeitos de pesquisa. Os medicamentos similares são cópias dos medicamentos originais, possuem teoricamente a mesma composição ou indicação terapêutica, mas nunca foram testados, de nenhuma forma, quanto à sua real composição química ou eficácia. A única exigência é que o laboratório que os produza forneça documentos que atestem boas práticas de produção. Por fim, os medicamentos genéricos são aqueles em que o medicamento foi testado, em laboratório, quanto à sua absorção e distribuição no organismo (o que chamamos de bioequivalência), mas nunca foi avaliado em estudos clínicos.
 
A bioequivalência poderia ser um parâmetro razoável (embora longe do ideal) se fosse confiável. O problema é que basta um laudo de bioequivalência para que a licença de um medicamento seja obtida, com validade de vários anos. Ora, quem garante que a qualidade está sendo mantida? E o problema, talvez mais grave, é que o teste de bioequivalência é apresentado pela própria empresa, ou por uma contratada dela. É como para pedir para uma pessoa avaliar o próprio trabalho. Até onde podemos confiar na honestidade e na sinceridade?
 
Mesmo que a fiscalização fosse feita pelo governo. Hoje 75% da população dependem do SUS para seu atendimento de saúde, incluindo a assistência farmacêutica (o fornecimento de medicamentos). Dessa forma o governo é o principal comprador (mas não o usuário) de medicamentos e o maior interessado em custos mais baixos, obviamente, à custa de uma redução de qualidade. Pedir para o interessado em custos baixos fiscalizar a qualidade é o mesmo que pedir para o lobo tomar conta do rebanho.

A situação é agravada pelo fato de que pelas normas atuais em vigor mesmo que se descubra (posteriormente) que um medicamento apresentava qualidade abaixo de desejável, o máximo que acontece é a interdição desse lote. Só depois de muitas ocorrências é que uma empresa é fechada e, mesmo assim, nada se pode fazer para impedir que as mesmas pessoas fundem uma nova empresa e recomecem todo o processo.

Além dessas 3 categorias oficiais existem os medicamentos falsificados. Falsifica-se de tudo, de CDs a canetas, de roupas e acessórios de grife a dinheiro, por que não se haveria de falsificar remédios? O site da ANVISA oferece relatos mensais dos medicamentos falsificados apreendidos. Mas só dos apreendidos. O que fazer então com os que estão em circulação? E o pior é que ninguém falsifica produtos baratos e de baixo custo. As falsificações são, quase sempre, voltadas para os medicamentos originais. As pessoas são criminosamente lesadas, acreditando estar comprando um medicamento original e adquirindo uma falsificação, sem nenhum produto ativo. Hoje, os medicamentos mais falsificados são os destinados a tratar a disfunção erétil.
 
Custando algumas dezenas de reais, cada comprimido, eles são o prato predileto de falsificadores. Estima-se que um em cada quatro produtos desses é falso. Ou seja, é melhor confiar na farmácia.
 
Enquanto a implicação da qualidade inferior de um medicamento para disfunção erétil seja apenas a falta de ereção, a falta de qualidade de medicamentos para tratar doenças infecciosas e neoplásicas pode custar a vida ao paciente.
 
Instituto Oncoguia - Os pacientes sabem que existem diferentes tipos de medicamentos? Qual a importância disso?

Ricardo Caponero - Infelizmente as pessoas em geral não distinguem uns medicamentos dos outros, ou, o que é mais triste, por vezes distinguem, mas por não terem condições financeiras estão sujeitas a depender do fornecimento do medicamento pelo governo, qualquer que seja a qualidade.
 
O uso de medicamentos de qualidade inferior significa a ineficácia do tratamento. Isso poderia sair mais caro, se o paciente precisasse de outros medicamentos ou de internações, mas muitas vezes não há outro tratamento disponível e o paciente permanece sem tratamento, ou morre.
 
Instituto Oncoguia - Os convênios informam sobre os medicamentos similares ou falsificados?

Ricardo Caponero - É claro que, como os medicamentos, há convênios de saúde de boa e de má qualidade. O uso de medicamentos falsificados não é de interesse de nenhum deles, que também são vítimas dessas ocorrências. O problema acontece quando, tanto quanto o governo, os convênios também resolvem baixar seus custos através da redução do preço dos produtos empregados.
 
Alguns convênios já perceberam que o barato sai caro e que nada é mais caro que um tratamento ineficiente e a necessidade de um segundo tratamento, por vezes mais caro que o primeiro seria. O problema é que essa percepção não é generalizada. Muitos convênios ainda forçam uma redução de custos exigindo descontos nos preços praticados pelos prestadores que, em maior ou menor grau, são forçados a baixar a qualidade de seus serviços e medicamentos utilizados.
 
O problema é que nem o convênio, nem o médico informam sobre o tipo de produto, e pior, nem o paciente pergunta. Eu acho que o comportamento do paciente é como o visite nossa cozinha. Você gosta e confia no restaurante, e nunca vai ver o que acontece na cozinha.
 
Instituto Oncoguia - Qual o conceito de bioequivalência para os genéricos e similares?
 
Ricardo Caponero - Um produto apresenta equivalência biológica se após a sua administração ele é absorvido e excretado com a mesma velocidade e se atinge os mesmos níveis no sangue. Nessas circunstâncias, se a substância é a mesma, se atinge a mesma concentração no sangue e se permanece pelo mesmo tempo o organismo, é de se imaginar que o efeito seja o mesmo. Então o problema não é a bioequivalência, mas a forma que ela é realizada, ou não realizada.
 
Esse conceito de bioequivalência é único, mas vale a pena lembrar que não existe bioequivalência para medicamentos biológicos. Esse grupo de medicamentos tem sua ação dependente de características biológicas intrínsecas e não de concentrações plasmáticas, por isso a bioequivalência não se aplica.
 
Como já dissemos, os similares não possuem bioequivalência comprovada e não há genéricos de produtos biológicos, já para esses o conceito de bioequivalente não se aplica.
 
Instituto Oncoguia - Como a Anvisa controla a matéria prima copiada?
 
Ricardo Caponero - Não controla. A ANVISA exige que as empresas forneçam certificados de boas práticas industriais. Depois disso ela se limita a colher, muito esporadicamente, algumas amostras do mercado e a esperar, passivamente, que os resultados de ineficácia ou toxicidade lhe sejam comunicados pelos profissionais de saúde. Nesses casos, confirmado o problema, a ANVISA faz uma notificação para retirada do lote do produto do mercado.
 
Instituto Oncoguia - Qual a opinião da classe médica sobre a qualidade dos medicamentos? Na prática, como isso fica?
 
Ricardo Caponero - A opinião da classe médica é dividida. Alguns defendem ferrenhamente a quebra do monopólio de laboratórios multinacionais e a disponibilização de medicamentos de custo mais baixo. Outros, mais prudente, receiam que custos mais baixos estejam associados à queda na qualidade. Mas no fundo a questão pode ser respondida de forma bastante óbvia com outra pergunta: Quantos médicos comprariam a cópia de um antibiótico para seu filho com pneumonia?
 
Instituto Oncoguia - Quando detectada uma irregularidade nos medicamentos qual medida é adotada pela Anvisa?
 
Ricardo Caponero - Ela certifica-se da irregularidade e notifica o laboratório e as distribuidoras para a retirada do mercado do lote do produto com problema.
 
Instituto Oncoguia - Como acontece a interdição de um medicamento?
 
Ricardo Caponero - Notificados pela ANVISA espera-se que laboratórios e distribuidoras retirem do mercado o medicamento com problemas.
 
Essa notificação é pública e pode ser encontrada no site da ANVISA, mas para isso o paciente precisará conferir o nome do medicamento, o laboratório e, muitas vezes, o número do lote.
 
A diferença aqui também é evidente entre os laboratórios. As grandes empresas, éticas, têm programas de farmacovigilância e, por ter um nome a zelar, são absolutamente rigorosas com esses controles de qualidade. Muitas chegam não só a retirar efetivamente o produto do mercado como mandam cartas aos médicos notificando a retirada e explicando os motivos pelos quais isso ocorreu.
 
Instituto Oncoguia - Como um paciente pode reconhecer um medicamento pirateado?
 
Ricardo Caponero - Essa é uma pergunta difícil. Um medicamento similar tem um nome comercial diferente do nome do original. Um medicamento genérico contém o nome do princípio ativo e uma indicação na embalagem, com uma faixa amarela e a letra G. O medicamento pirata, falsificado, pode ser idêntico a qualquer um dos medicamentos, inclusive o original.
 
Os grandes laboratórios têm investido em embalagens mais seguras, lacradas, com selos holográficos e marcas de segurança, mas muitas vezes conhecer e identificar essas diferenças pode ser tão difícil quanto perceber uma moeda falsa. Enquanto na cópia e nos genéricos a diferença de preço pode ser um indicador, as falsificações são, muitas vezes, vendidas exatamente pelo mesmo preço do original. Como fazer então?
 
O ideal é comprar medicamentos em farmácias de confiança, observar bem a embalagem e, se possível, consultar periodicamente o site da ANVISA.
 
Instituto Oncoguia - Como os pacientes podem se informar e avaliar a qualidade dos medicamentos?
 
Ricardo Caponero - Acho que, além das medidas que comentamos acima, o mais importante é uma mudança de mentalidade. Acho que é necessária a conscientização e uma mudança de atitude de toda a população. Afinal, nada é mais certo do que a lei de mercado, ou seja, só se vende produtos de qualidade inferior porque a pessoas compram esses produtos. Ou seja, só há CDs piratas porque há mercado para eles. Se ninguém comprar mais produtos piratas, a tendência é que eles desapareçam, mas o que está ocorrendo parece ser absolutamente o contrário.
 
E se as pessoas toleram cópias de má qualidade, passam a aceitar produtos de qualidade inferior em troca de uma redução do custo. Alia-se a isso a impunidade aos atos lesivos ao consumidor e o resultado é o caos onde nos encontramos. Quando levamos o carro na oficina para uma revisão corremos o risco de que sejam utilizadas peças de qualidade inferior (embora seja cobrado o original) e o mesmo acontece na farmácia, só que com prejuízos muito além dos financeiros. Da mesma forma que precisamos solicitar as notas fiscais que comprovem a qualidade das peças na oficina, precisamos começar a ter a mesma atitude nas farmácias, clínicas e hospitais.
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